O conteúdo deste blog é PURAMENTE ficcional. Qualquer semelhança com a realidade é uma completa coincidência. U.U

6.11.10

Sobre a vida e outras coisas igualmente frágeis.

Hoje, Scarlet Carson está de luto.

Recebi a ligação às 22:00 do dia de finados, e ele já estava morto. Não era o meu melhor amigo, não era meu irmão, meu namorado, não era da minha família. Eu nem sequer costumava vê-lo com freqüência.
Ele era um fragmento do meu passado. Na maior parte das vezes uma lembrança, de vez em quando um abraço saudoso ocasionado por um encontro acidental em uma esquina qualquer ou na entrada de um show de rock.
Ele era um garoto. Só um garoto.
"Ele sofreu um acidente de carro. Ele morreu." Essas palavras ficaram ecoando na minha cabeça por um longo, longo tempo antes de parecerem reais. Porque a morte raramente parece real. Soa mais como uma lenda urbana, que nunca se aproxima de você, só dos outros. Só de quem você não conhece.
Não fazia sentido pra mim, e por um tempo continuou a não fazer, até que a palavra "morreu" se encaixou com a imagem do rosto sorridente dele, e eu entendi que nunca mais veria aquele rosto. Nunca mais. Nunca mais é um tempo muito longo.
Aí, a primeira lágrima rolou. E outras mil depois dela.
Eu não conseguia parar de tremer. Tremia de pavor, um pavor tão profundo que pesava na minha respiração e escurecia meus olhos. Um pavor que ainda não passou. Pavor da morte.
A vida é uma coisa ridiculamente frágil. O que é irônico, porque viver é a coisa mais difícil que existe. Você nasce, e só isso já é complicado por si só, aprende a andar, aprende a falar, estuda, constrói sonhos, cria esperanças, arruma um trabalho, bate o carro e morre. Fácil assim. Um segundo, um passo em falso, um escorrego, qualquer coisa. Um sopro e sua vida se foi.
E tão frágil quanto a vida são as nossas lembranças.
Eu fiquei tentando me lembrar de cada detalhe, cada conversa, cada sorriso. Mas minha memória está cheia de buracos, e tudo que eu conseguia pensar eram alguns poucos momentos, o dia em que ele e a Pianista ficaram pela primeira vez, aquela tarde conversando no shopping quando eu não queria ficar sozinha, a orelha furada em segredo, aquele cover de Massacration em Julho de 2006, com um sanduíche estragado e uma caixa de leite, o dia em que ele chorou no cinema, bem do meu lado, e a última vez que eu o vi, quinta-feira, 28 de Outubro de 2010, caminhando ao lado da irmã e da sobrinha. Um aceno com a mão, um sorriso, "quanto tempo não te vejo", "a vida anda corrida, mas está ótima", um abraço, e tudo passou despercebido, cinco dias antes de eu saber que nunca mais vou poder vê-lo. E isso eu sei que nunca vou esquecer.
Entretanto, todo o resto desapareceu. As conversas de horas e horas ao telefone, das quais eu não lembro uma palavra, os passeios de fim de semana, idas à galeria, os planos, os sonhos, e até mesmo as músicas que nós gostávamos de ouvir. Tudo se foi, como se no momento em que me disseram que ele havia morrido, tudo sobre ele tivesse começado a se auto-destruir, todos os vestígios da sua existência. Como se nunca tivesse estado lá.
Mas eu sei que esteve. E sei que cada uma dessas lágrimas não estaria sendo derramada se fosse alguém que eu pudesse esquecer. Atentada pelo pavor, cravei cada uma dessas memórias no papel, para jamais deixá-las ir, e chorei, revivendo cada uma delas.
Em algum lugar, dentro de mim, ainda estou chorando. E vou chorar ainda muito mais.
Eu queria ficar congelada no tempo, com aquelas lembranças, mas mesmo que eu deseje de todo o coração parar de respirar, o ar ainda entra e sai dos meus pulmões sem que eu possa controlar por muito tempo. Eu ainda sinto fome, e sede, durmo quando fico cansada, sinto dor quando me machuco. Não importa o quanto eu queira morrer também, não vai simplesmente acontecer.
E a dor, tanto faz. A vida é uma doença sexualmente transmissível, invariavelmente fatal, frágil como o mais fino cristal. Enquanto eu choro a minha perda, outras vidas começam e terminam, sem que isso faça diferença pra mim, milhões de pessoas choram suas próprias dores sem que a minha importe, e a vida delas continua, como a minha continua.
Tanto faz.
Meu coração também é especialmente frágil. Se parte com muita facilidade. Geralmente tem concerto. Mas dessa vez, dessa vez o que partiu foi algo que eu nunca vou poder concertar. Alguém que esteve lá e nunca mais vai estar. Alguém que eu nunca deixei ninguém saber o quanto era importante. Alguém para quem eu nunca disse adeus, eu te amo, eu também não me arrependo, eu acredito em você, viva pra sempre... Alguém pra quem eu nunca vou poder dizer.
O que se partiu dessa vez não se concerta nunca mais. Como uma vida que não volta. Como as lembranças perdidas. Como as palavras ditas. O tempo não volta atrás, então eu sigo em frente. Apavorada, ferida, com dor.
Mas ele esteve aqui. Eu nunca vou esquecer.



"Mesmo se o amanhã chegar
Mesmo se algum dia eu me tornar um adulto
Tenho certeza de que sempre lembrarei
Que vocês estavam aqui comigo
Eu nunca esquecerei
Mesmo quando estou nos muitos finais deste vasto mundo...
Por esse momento que nunca desaparecerá
Eu agradeço, a todo mundo."